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O que nos assiste, 2019
Théo Mario Coppola
Texto da exposição O que nos assiste, SIM Galeria, Curitiba, Brasil, 2019.

O trabalho de Julia Kater expõe uma variedade de situações cotidianas íntimas, todas vividas e percebidas como intrigas  pessoais e universais. Julia Kater apreende seu próprio cotidiano. Ela o fotografa como ponto de partida de uma narrativa na qual, através do jogo de recuos sucessivos e de associações de formas, recompõe conjuntos a serem elucidados, como em La Roche [A Rocha] (2018), apresentada por ocasião de sua exposição individual em 2018 na Galeria SIM, em São Paulo.

 

Os gestos que se revelam na obra sugerem uma ação passada ou futura. A repetição do ser. A repetição de si. Pelo tempo. Pela ação dos outros. Ao contrário de uma abordagem onisciente, o trabalho de Julia Kater reúne detalhes, pedaços e partes de coisas e pessoas. A artista invoca a sociologia, a psicanálise e a filosofia a fim de redefinir os contornos de um ser contemporâneo e transitório, habitado por seus traumas, lembranças e desejos contraditórios.

 

Quer seja uma ação específica ou a evocação de uma lembrança, essa fragmentação de coisas e pessoas traça uma narrativa episódica e lacunar do ser. Aquilo que é retido está bem distante do momento da captura da imagem e da identificação das situações, de modo a revelar a universalidade da cena. Uma refeição, uma tarde na praia, um encontro, uma conversa. Os rostos ocultos por outra imagem, por outros corpos, possuem contornos, vibrações. Mas o olhar, a tensão, o desejo são todos potenciais, eventuais ou ocultos. A representação é alterada pela própria colagem e/ou edição. Os corpos das pessoas fotografadas por Julia Kater não são representados na sua totalidade. Pelo contrário, eles aparecem por sugestão, evocação, premonição. Como uma intuição do ser que é, do ser que vem a si.

 

O desejo não é diretamente compreensível. O que diz essa mão? O que quer essa cabeça? Como interpretar o olhar em um rosto ausente? Para Julia Kater, a projeção de si no mundo ocorre através da identificação do desejo do outro, na apreensão da vontade de quem nos cerca, fala conosco, se entrega, ama, promete, informa, contradiz.

 

Na última série, uma fotografia serve de cenário para uma cena. Mesa branca instalada temporariamente para uma refeição. Um almoço na grama. Em frente às escadas de uma casa de família. No campo. Outras fotografias – de pessoas, detalhes, objetos – são adicionadas à primeira por superposição. As janelas de papel cortadas nessas fotografias menores fazem aparecer ainda outras cenas. A memória, o desejo, a projeção são ficções. Tudo o que se acredita poder reconhecer ou compreender, representar ou descrever está, na realidade, ainda mais distante de nós. Todos pretendem se lembrar bem e creem retratar o passado com uma veracidade tenaz. Porém, o que pode restar de um presente do qual apreendemos apenas impressões vagas, lembranças transformadas por humores e sensações, e pela ambição de fazer com que aquilo que vivemos corresponda a uma ideia? Os meandros da memória se aproximam das variações do desejo. O ser se encontra entre essas duas dimensões. Ele está à procura da permanência do outro para esquecer sua condição transitória. Ele recusa a ausência de uma parte do outro. Ele rejeita o esquecimento. Ele se vincula.


What concerns us, 2019

Théo Mario Coppola

Exhibition text for What Concerns Us, SIM Gallery, Curitiba, Brazil, 2019.

Julia Kater's work exposes a variety of intimate everyday situations, all experienced and perceived as personal and universal intrigues. Julia Kater captures her own everyday life. She photographs it as a starting point for a narrative in which, through the interplay of successive retreats and associations of forms, she reassembles sets to be elucidated, as in La Roche [The Rock] (2018), presented on the occasion of her solo exhibition in 2018 at the SIM Gallery in São Paulo.

The gestures revealed in the work suggest a past or future action. The repetition of being. The repetition of oneself. Through time. Through the actions of others. Unlike an omniscient approach, Julia Kater's work gathers details, bits, and parts of things and people. The artist invokes sociology, psychoanalysis, and philosophy to redefine the contours of a contemporary and transitory being, inhabited by its traumas, memories, and contradictory desires.

Whether it is a specific action or the evocation of a memory, this fragmentation of things and people traces an episodic and gappy narrative of being. What is retained is far from the moment of image capture and situation identification, revealing the universality of the scene. A meal, an afternoon at the beach, a meeting, a conversation. Faces obscured by another image, by other bodies, possess outlines, vibrations. But the gaze, the tension, the desire are all potential, eventual, or hidden. Representation is altered by collage and/or editing itself. The bodies of people photographed by Julia Kater are not represented in their entirety. On the contrary, they appear by suggestion, evocation, premonition. Like an intuition of being, of being to oneself.

Desire is not directly understandable. What does this hand say? What does this head want? How to interpret the gaze on an absent face? For Julia Kater, the projection of oneself in the world occurs through the identification of the desire of the other, in the apprehension of the will of those around us, who speak to us, surrender to us, love us, promise us, inform us, contradict us.

In the last series, a photograph serves as a setting for a scene. A temporary white table set for a meal. Lunch on the grass. In front of the stairs of a family house. In the countryside. Other photographs – of people, details, objects – are added to the first by superposition. The paper windows cut in these smaller photographs reveal yet other scenes. Memory, desire, projection are fictions. Everything believed to be recognizable or understandable, representable or describable is, in reality, even further away from us. Everyone intends to remember well and believes to portray the past with tenacious veracity. However, what can remain from a present of which we only grasp vague impressions, memories transformed by moods and sensations, and by the ambition to make what we live correspond to an idea? The intricacies of memory approach the variations of desire. Being is found between these two dimensions. It is seeking the permanence of the other to forget its transitory condition. It rejects the absence of a part of the other. It refuses forgetfulness. It binds.

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