top of page

Abismo prateado, 2012

Mario Gioia

Abismos. Esse era o título de ‘trabalho’ do que vem a ser Lugar do Outro, primeira individual da artista franco-paulistana Julia Kater. A denominação é um pouco curiosa, já que predominam paisagens no conjunto de obras exibido na sala Zip’Up (ou construções que remetem ao gênero). Mas uma peça, o vídeo Tempo do Branco, explica mais sobre o tom ‘abissal’ que foi o catalisador para a artista pensar nesse prototítulo.

Tempo do Branco inverte a perspectiva de como vemos tradicionalmente a paisagem. Por meio de uma operação simples, o que era um céu azulado/gelo/cinzento, um firmamento seguro, desfaz-se e vira um elemento de perigo, tal qual um buraco sem fundo (ou com um solo muito longínquo). O referente, uma cadeia de montanhas cujos cumes podem ser dos Alpes tanto quanto qualquer outra formação do tipo, torna-se uma massa de formas pontiagudas, algo ameaçadoras, apontando para baixo (revelando o quê? Nesse sentido, dialoga com a provocativa Catedral, de Vanderlei Lopes) . Kater, literalmente, nos tira o chão. Na sua estreia em vídeo, a artista acerta em enveredar pelo risco, mesmo que utilizando expedientes triviais.

A série Lugar do Outro, presente na mostra por meio de um registro isolado e de um díptico, traz a conhecida habilidade de Kater em criar colagens fotográficas, nas quais opta por uma fatura low fi _ a artista é minuciosa ao acumular folhas de papel algodão em camadas marcadas por incisões feitas manualmente, dispensando ferramentas hoje banalizadas de pós-produção, como o Photoshop. O azul do céu se desenha não como algo celebrativo, mas como um dado de carga elevada, a destruir coisas belas, a deslocar e consumir o que era aparentemente rígido e sólido. O peso do mundo. Diminuta e de contornos dissolvidos, uma urbe indefinida em formato de landscape é chave na composição, pois cria uma referência, ainda que frágil e residual.

“[...] Em que e por que uma obra nos fornece buscas e perguntas, dons e dívidas, deslumbramentos e frustrações. [...] Pela arte, nossos sonhos e nossas visões, nossos fantasmas e nossos desejos são transformados a partir do interior e metamorfoseados em condições de acolher e de coletar as obras. Isso é preciso desde sempre, e muito particularmente nestes tempos globalizados do look fugaz e da imagem fugidia, do peso das palavras e do choque das bobagens, desses ópios do povo e dessas derivas do homem. Os artistas nos abrem os olhos e nos obrigam a refletir. Os fotógrafos em especial.”1

Em dias de blablablá tecnológico e de odes desavergonhadas a empresários ‘visionários’ de máquinas novidadeiras, a densidade da obra de Kater ganha contornos quase políticos. E ela se diferencia ainda mais dos pares por enfatizar a influência do cinema, da literatura e da psicanálise no processo artístico, campos que não devem se chocar, mas coabitar. “Breton associou psicanálise, fotografia e literatura ao afirmar que a escrita automática era uma verdadeira fotografia do pensamento”2, assinala o teórico francês François Soulages. Assim, a artista pode ecoar em sua produção visual traços de Antonioni e Lacan, Bergman e Jung, Sebald e Angelopoulos.

“Assim, por diferentes que tenham sido uns dos outros, os grandes inovadores do cinema moderno, de Rosselini a Godard, de Bresson a Resnais, de Tati a Antonioni, de Welles a Bergman, são aqueles que afastam radicalmente sua arte do modelo teatral-propagandista, onipresente, ao contrário, no cinema clássico. Em comum, eles têm o fato de pressentir que não têm mais exatamente relação com os mesmos corpos que antes. Antes dos campos [de extermínio], antes de Hiroshima. E isso é irreversível.

Qual a cenografia para o cinema moderno, já que afinal se trata de lidar _ humor negro _ com um ‘homem novo’, com os sobreviventes das sociedades pós-industriais? Com um corpo que perdeu o lastro de seu peso, cuja débil radiografia desbotada é exibida pela televisão nascente?”3, interroga-se o crítico de cinema Serge Daney.

O tempo escorre lentamente e não permite uma fácil apreensão, como sugere a ponta seca sobre colagem fotográfica sem título, em tom cinza/gelo, disposta numa das paredes do espaço expositivo, e outros trabalhos de Kater, como o notável Juillet. Também atestam o deslocamento da paleta (o elo com a pintura é um dos trunfos dessa produção) para tonalidades mais neutras. “Se estamos doentes de Eros, dizia Antonioni, é porque o próprio Eros está doente; e está doente não simplesmente porque está velho ou caduco em seu conteúdo, mas porque é tomado na forma pura de um tempo que se rasga, entre um passado já terminado e um futuro sem saída.”4

A multiplicidade plástica de Kater é marcante em Lugar do Outro. As colagens fotográficas apresentam características também da pintura, do desenho, da gravura e do tridimensional. “Esses últimos trabalhos possuem mais volume. Mostrar com isso um corpo que se faz pela sua ausência ou vestígio, por detrás destas camadas”5, declara a artista ao crítico Bruno Moreschi.

A obra de Julia Kater, então, nos traga para espaços abissais, de conhecimento do próprio eu, em movimentos fragmentados e instáveis, numa procura contínua e que fornece mais inquietações do que resultados definidos e sedimentados.

  1. SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 350 e 351

  2. SOULAGES, François. Idem, p. 226

  3. DANEY, Serge. A Rampa. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 231

  4. DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo, Brasiliense, 2009, p. 35

  5. MORESCHI, Bruno (org.). Um de Três – Carla Chaim, Julia Kater, Marcia de Moraes. São Paulo, Funarte, 2011, p. 40

.

Silver abyss, 2012

Mario Gioia

Abismos (Abysses). This was the title of the ‘work’ which became Lugar do Outro, the first solo exhibition of the Franco-Paulistano artist Julia Kater. The name is somewhat curious, given that landscapes dominate the set of works exhibited in the Zip’Up room (or else constructions that refer to the genre). But one piece, the video Tempo do Branco (Time of White), explains more about the ‘abyssal’ tone that was the catalyst for the artist's thinking behind the proto-title.

Tempo do Branco inverts the perspective of how we traditionally see landscape. Through a simple operation, what was before a blue/icy/grey sky, a secure backdrop, disintegrates and becomes an element of danger, like a bottomless pit (or with the ground quite some way down). The reference, a mountain range with peaks that could equally be in the Alps or any other range, becomes a mass of somewhat threatening, downward-pointing spikes (pointing down to what? In this sense, it relates to Vanderlei Lopes’ provocative piece Cathedral). Kater, literally, takes us off the ground. In her debut video, the artist gets the pitch just right in appealing to the risk factor, despite using only trivial resources.

The series Lugar do Outro, represented in this show through an isolated photograph and a diptych, conveys Kater's renowned ability to create photographic collages, in which she opts for a low fi key – the artist meticulously gathers sheets of cotton paper in layers marked by handmade incisions, dispensing with the use of commonplace post-production tools like Photoshop. The blue of the sky is designed not as something celebratory, but rather as a high-load element, destroying beautiful things, shifting and consuming what was apparently rigid and solid. The weight of the world. Diminutive and with dissolved curves, an undefined urban setting in the shape of a landscape is key to the composition, as it creates a reference, albeit fragile and remnant.

“[...] How and why does a work of art offer us questions and challenges, gifts and debts, glimpses and frustrations. [...] Through art, our dreams and our visions, our ghosts and our desires are transformed from within and metamorphosise into conditions to take in and absorb the works. This has always been necessary, and is especially so in these globalised times of the fleeting look and the fugitive image, of the weight of the words and the clash of rigmaroles, of these opiates of the masses and aimless drifting of mankind. Artists open our eyes and force us to reflect. Photographers even more so.”1

In these days of technological blah blah blah and shameless odes to ‘visionary’ businessmen of novelty machines, the density of Kater’s work gains an almost political character. And she stands out even more from her peers by emphasising the influence of cinema, literature and psychoanalysis on the artistic process; fields which should not clash, but rather coexist harmoniously. “Breton associated psychoanalysis, photography and literature, asserting that automatic writing was a true photography of our thoughts” Thus, the artist can echo in her visual production characteristics of Antonioni and Lacan, Bergman and Jung, Sebald and Angelopoulos.

“Therefore, however different they may have been to each other, the great pioneers of modern cinema, from Rosselini to Godard, Bresson to Resnais, Tati to Antonioni, Welles to Bergman, are the ones whose art makes a radical break from the theatrical-propagandistic model, which, on the contrary, is omnipresent in classical cinema. They all share the feeling that they no longer really have any relationship with the same bodies as before. Before the [extermination] camps, before Hiroshima. And this is irreversible.

What is the setting for modern cinema, bearing in mind we are now dealing, in black humour, with a 'new man', with the survivors of post-industrial societies? With a body that has lost the basis of its weight, whose weak, faded x-ray is screened by a new-born television?”3, wonders the film critic Serge Daney.

Time slips by slowly, not allowing us to easily seize it, as suggested by the dry point on the untitled photographic collage, in a grey/icy tone, arranged on the walls of the exhibition room, and by Kater’s other works, like the remarkable Juillet. They also demonstrate a palette shift (the link with painting is one of the triumphs of this artwork) to more neutral tones. “If we are sick with Eros, Antonioni said, it is because Eros is himself sick; and he is sick not just because he is old and worn out in his content, but because he is caught in the pure form of a time which is torn between an already determined past and a dead-end future.”4

Kater's plastic multiplicity is striking in Lugar do Outro. The photographic collages also bring traits of painting, drawing, engraving and three-dimensional work. “These latest works have more volume. They show a body made through its absence or remains, behind those layers”5, the artist declares to critic Bruno Moreschi.

Julia Kater’s work, therefore, brings us into abyssal spaces, to self-knowledge, to fragmented and unstable movements, in an ongoing search that offers us more disquiet than defined and established results.

Mario Gioia

Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2011, de Presenças (Zipper Galeria), inaugurando o projeto Zip'Up, destinado a novos artistas (que teve como outras mostras Já Vou, de Alessandra Duarte, Aéreos, de Fabio Flaks, Perto Longe, de Aline van Langendonck, Paragem, de Laura Gorski, Hotel Tropical, de João Castilho,e a coletiva Território de Caça, com a mesma curadoria). Em 2010, fez Incompletudes (galeria Virgilio), Mediações (galeria Motor) e Espacialidades (galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista espanhola Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.

.

bottom of page